Xamanismo

Muitas pessoas ainda se surpreendem:

— Xamanismo?! O que é isto? Serve para quê? Inúmeras também têm sido as respostas... só que poucas revelam realmente o conhecimento. A maior parte se escuda no mau uso da neurolingüística para tentar segurar ou garantir adeptos...

— Xamanismo? Xamã? Por acaso isto é religião?

Muitos estudiosos sustentam que xamanismo é uma religião e xamã, um sacerdote. É isso, mas não é só isso. Podemos admitir tratar-se de uma religião se analisarmos a questão pelo aspecto morfológico da palavra, originária do latim religare, ou seja, a religação do homem com os aspectos do sagrado. É religião se observarmos que o xamã acredita e se relaciona com forças sobrenaturais e elementais consideradas criadoras do Universo e que estas forças são respeitadas, adoradas, obedecidas e ainda invocadas nas cerimônias e rituais, quer sejam de agradecimento, de iniciação ou de passagem e de cura...

— Mas o que é, afinal, xamanismo?

Entre outras coisas, é a maneira sagrada de ver a vida, de viver — daí ser sua prática codificada como uma demonstração religiosa — é se relacionar com o cosmo, o Planeta e todas as formas de vida que nele existem, além de conviver harmonicamente com os outros níveis da realidade não-comum (aqueles que estão além da experiência do mundo físico).

Xamanismo é um estado de consciência, encontrado em todas as épocas, desde o surgimento do primeiro homem sobre a face da Mãe Terra, desenvolvido para compreender o meio ambiente e viver pacífica e harmonicamente com ele. Nesta prática, o xamã esquece a questão de dominar a natureza e procura entrar em perfeito estado de comunhão com ela pelo contato que faz com as forças cósmicas e energias intrapsíquicas que lhe possibilitam receber as mensagens dos povos mineral, vegetal, elemental e animal, entre o qual se inclui o próprio ser humano. Aí também ele consegue perceber a unidade sagrada da realidade que permeia todas as outras dimensões além das que conhecemos e já devidamente codificamos.

Por isto mesmo as práticas xamânicas são opostas ao centralismo da cultura e do conhecimento ocidentais limitados por visões reducionistas e pobres da natureza, do espírito, do sagrado e do próprio homem.

Xamanismo também é definido como a medicina tradicional das almas e o caminho que leva aos estados de consciência capazes de alcançar o conhecimento e a sabedoria do mundo oculto atrás do mundo, embora ainda haja quem encare este meio de transformação como uma doença mental, um estado de alucinação ou de loucura, mesmo sabendo o quanto cientistas renomados nos mais diversos ramos da ciência ousam aventurar-se nas iniciações e práticas xamânicas em busca do elo perdido.

A palavra xamã, originária da língua tunguska, Sibéria, significa aquele que tem o conhecimento, o que conhece os segredos, o que detém o poder de visitar os outros mundos. Quem faz ou é tudo isso senão os nossos curandeiros, pajés, curadores e homens medicinas tão conhecidos ao longo da história e que em passado ainda não muito distante, dentro das comunidades tribais, eram os zeladores e cuidadores espirituais dos nossos ancestrais?

Os dicionários — talvez para economizar palavras — não explicam o que é ou quem é o xamã, e sobre xamanismo limitam-se a esclarecer tratar-se de uma religião praticada "por certos povos do Norte da Ásia, baseada na crença de que os espíritos maus ou bons são dirigidos pelos xamãs (...) a religião de certas tribos indígenas norte-americanas e a dos esquimós, de crença semelhante à do xamanismo". Bastante esclarecedor!

Desde o início do século XX, estudiosos e curiosos voltaram-se para resgatar o conhecimento do qual falavam alguns remanescentes destas culturas consideradas primitivas e começaram a perceber o seu valor e o quanto o homem havia se desviado do conhecimento e do caminho original. Dentre eles destacam-se o psicólogo e psicanalista Carl Gustav Jung, o sociólogo Michael Harner (criador de institutos de pesquisas xamânicas em alguns lugares do mundo), o antropólogo e escritor Carlos Castañeda (ele próprio iniciado nos rituais da Tradição do povo Yaqui, de Sonora, no México, pelo velho curandeiro Don Juan Mattus), Mircea Eliade, especialista em culturas primitivas, o historiador Dee Brown, entre outros.

Foram os livros de Harner e Castañeda que nos anos 70 abriram a porta para as pessoas abandonarem a primeira visão de que o xamanismo era uma forma primitiva de religião superada pelas culturas hierarquizadas modernas e, a partir de então, irem buscar o desenvolvimento pessoal e espiritual nas experiências diretas dos xamãs.

O que há no xamanismo para despertar o interesse desses homens? A sabedoria, o conhecimento ancestral e sagrado inerente ao homem, mas do qual ele se afastou ao fazer uma opção de retaliação com a Vida e com ele próprio. Ao longo da caminhada que cumpre sobre a Mãe Terra, o homem preteriu esconder-se nas sombras da noite para não se ver e impedir de ser visto. Desta forma, tornou-se um desconhecido dele mesmo. Ao raiar do sol, veste a sua fantasia e sai para brincar de criador sem, contudo, atentar para o fato de que este distanciamento que colocou entre os seus corpos e os demais integrantes da teia cósmica o faz adoecer e adoecer e adoecer...

— Como se faz para ser xamã?

Na maioria das tradições, os xamãs já nascem feitos. Aos poucos eles são descobertos com a revelação dos seus dons de cura ou de sabedoria e do conhecimento sagrado. Inúmeros casos relatam sobre experiências com doenças que vitimam pessoas que conseguem sobreviver curando a si mesmas. São doenças raras, não diagnosticadas, de origens desconhecidas ou até mesmo males considerados incuráveis. O curador, via de regra, é aquele que em primeiro lugar curou a si e por isso tem o poder e o dom de curar os outros.

Que recursos vai usar, é a medicina pessoal de cada um. Pode ser pelas ervas, pelas pedras e cristais, pelas cores, pelos banhos, defumação e fumigação, chás, infusões e beberagens...

Pode ser pelo resgate da alma, da recuperação do animal de poder, da jornada, meditação...

Descoberto o dom, o iniciando passa a ser orientado por um ancião ou curador mais velho que vai iniciá-lo em alguns rituais e caminhos. O primeiro passo é aprender a acalmar, de modo consciente, a energia no plano físico, pois o homem tem a tendência de se excitar, quando se trata de servir à causa e propósitos divinos, não usufruindo o repouso necessário para se recarregar e reabastecer da energia cósmica. Para conseguir isto, o discípulo precisa aprender a entrar no silêncio que, na linguagem de hoje, significa meditar.

Nenhum aprendiz conseguirá obter êxito no seu trabalho e crescimento espiritual se diariamente não dedicar algum tempo para isolar-se do mundo — no sentido xamânico, o mundo mental e sentimental inerente ao ser humano — e entrar no Grande Silêncio. Aí ele irá encontrar a nutrição necessária ao fortalecimento da sua capacidade de resistir e superar as adversidades, o seu poder pessoal, e de onde tirará a força e a possibilidade de expressar e manifestar o Bem que lhe permitirá o acesso aos seus semelhantes com integridade, dignidade e bondade.

Na maioria das tradições nativas americanas, a Busca da Visão é a melhor forma de entrar no Cirande Silêncio. Este ritual também é comumente chamado de Subir a Montanha, o que significa ascender a consciência mais elevada para orar. Pela oração pode-se acessar o silêncio no seu estado mais profundo interiormente, unindo duas das mais importantes formas de cura.

Para silenciar é preciso se concentrar, algo difícil de conseguir na nossa cultura ocidental, onde tudo age contra essa capacidade. Assim, torna-se necessário aprender a ficar só consigo mesmo, sem ler, sem ouvir rádio, assistir a televisão, sem fumar, sem beber e, em determinados momentos, abster-se até da alimentação. O jejum facilita o acesso ao eu interior e superior e à concentração. Ser capaz de se concentrar é o mesmo que ser capaz de ficar a sós consigo.

O discípulo aprende, desta maneira, a ficar concentrado em tudo o que faz, pois a atividade do momento presente é a única coisa que importa, que merece a plena entrega. Neste sentido, é preciso ressalvar, é importante que o coração esteja presente naquilo que se faz. Pode ser simplesmente ouvir música, ou conversar com alguém, ou varrer uma casa. Tais fatos assumem uma nova dimensão de realidade se de tem a integral atenção da pessoa.

Usar a concentração, por exemplo, é evitar a conversação trivial, a conversa não genuína. Estar concentrado em relação ao outro significa ser capaz de ouvir. Há quem escute os outros, dê conselhos sem, contudo, ouvir realmente, pois não põe o coração naquilo que está fazendo e, conseqüentemente, não leva a sério o interlocutor. Assim não consegue auxiliar ou concretizar um processo de cura.

Estar concentrado é viver integralmente o momento presente, agora e aqui. E abandonar a pré-ocupação (não pensar naquilo ou na coisa seguinte a ser feita enquanto está fazendo isto neste instante).

Ao adquirir este conhecimento, o discípulo inicia o processo de aquisição da sabedoria e da revelação dos ensinamentos sagrados: a iluminação e o amor divinos residem em seu coração; as partículas de vida energeticamente capacitadas para promover a cura e restaurar a perfeição habitam, desde o início, o seu corpo físico que possui o poder de suprir toda e qualquer exigência e necessidade.

O aprendiz também é levado aos rituais de purificação. É preciso se purificar das toxinas que poluem, além do seu físico, os seus corpos emocional, mental e espiritual. As saunas, a fumigação, os banhos de ervas, o jejum, tudo leva a essa experiência que é uma extensão do aprendizado de entrar no Grande Silêncio.

O curador precisa saber dançar. Dançar é tornar-se maleável, flexível, é aprender sobre o dom do respeito que é a disposição de olhar duas vezes a mesma coisa e aceitar o resultado de toda e qualquer situação a partir do entendimento de que tudo é o que pode ser. Qualquer que seja o resultado é o que foi possível. Quando olhamos uma segunda vez, mostramos que estamos dispostos a mudar de posição e não ficamos aferrados a um ponto de vista particular, retidos em uma crença ou indisponíveis para acumular os benefícios que as mudanças de postura podem nos trazer.

A dança é considerada um sistema de fortalecimento e de recuperação da alma. Quando se dança, atinge-se a essência daquilo que se é e experimenta-se a união entre o espírito e o físico. A dança nos permite fluir, buscar e expressar a criatividade, definir e refinar os movimentos do corpo, criar a possibilidade da síntese e da integração energética, e encontrar contentamento, harmonia e paz.

O xamã também aprende a ver. E ver vai além do olhar. É preciso ver com todo o corpo, com todos os sentidos e sentimentos. E quando se entra no Grande Silêncio, podemos ao mesmo tempo aprender a ver o nosso lado escuro, nossas sombras que, em alguns casos, são os nossos verdadeiros dons. Ver é muito mais que olhar e enxergar. É a capacidade de sentir, sobretudo, o semelhante.

Enquanto é preparado, o aprendiz, homem ou mulher, vai acumulando os seus talismãs e escudos de proteção, a exemplo da sacola de medicina ou bolsa de talismãs. Tradicionalmente estas sacolas são feitas pelos xamãs para dar proteção às pessoas comuns das suas comunidades. No caso do iniciado, o responsável pela sua orientação pode fazer-lhe a bolsa, mas ele pode escolher fazer a sua própria sacola de cura (usada no pescoço do mesmo modo que no candomblé os iaôs, ialorixás e babalorixás usam as guias dos santos ou patuás).

Diferente dos índios brasileiros, os americanos do Norte aceitam pacificamente a existência das curadoras, muito respeitadas pelos seus dons e poderes, em muitos casos superiores aos dos homens, e que se distinguem por usarem bolsas de medicina feitas de pele de lontra. Este animal detém um grande poder de cura e incorpora a energia feminina em sua maior expressão, atuando indistintamente sobre homens e mulheres, despertando sentimentos de doação e continência. Ela nos conecta com a alegria, a brincadeira e a partilha enquanto nos faz compreender que "a energia feminina traz a criação, a imaginação e a arte, e nada melhor do que se conectar com estes sentimentos por intermédio do amor", a principal medicina de cura.

Nas culturas xamânicas do Norte, o respeito pela mulher é semelhante ao do candomblé, uma tradição matriarcal por excelência. A Mulher Novilha de Búfalo Branco, por exemplo, é comparada a Jesus Cristo, pelo que ambos simbolizam para o homem: o resgate da conexão com o Criador e a compreensão do Sagrado.

A mulher tem uma participação destacada nas cerimônias dos nativos norte-americanos, mesmo nos rituais essencialmente masculinos, como a Dança do Sol. A mais velha anciã da tribo abre o círculo onde está a árvore à qual serão amarrados os espetos que curam os dançarinos e se senta em um lugar de honra.

Para quem se inicia na senda do xamanismo, os primeiros passos consistem no encontro com o animal de poder, ou o seu espírito verdadeiro, com o Guia Espiritual nesta vida/encarnação e o reconhecimento de seu Local de Poder, para onde se desloca sempre que precisa buscar orientação espiritual e cura.

Encontradas estas guianças, a pessoa é introduzida em alguns rituais, como a Cerimônia da Purificação e a Busca da Visão. A intenção agora é saber qual a real vocação e qual a medicina desta pessoa: ela vai trabalhar com as ervas (banhos, infusões, chás. beberagens), será um condutor de rituais, um cantador, um orador ou um contador de histórias? O que é que ela vai mesmo exercer como intermediária entre os mundos, as dimensões de cura? Quais serão os seus elementos aliados?

Este processo é semelhante ao da confirmação do Orixá dono da cabeça do iniciado na tradição afro-brasileira.

Além da bolsa de medicina, o xamã costuma ter pelo menos uma pedra, cristal ou gema que lhe serve de suporte em rituais e cerimônias, tambor de elementos naturais (madeira, couro, penas, contas, etc), chocalhos ou maracás, cachimbo de madeira ou pedra (depende de sua tradição), penas, geralmente de águia, gavião, coruja, beija-flor, conchas ou abalones, para queimar ervas sagradas como a sálvia e capim doce, e bastão de poder (com elementos representativos da medicina do xamã).


Caminhada de Cura

Os povos indígenas interpretam a cura como uma conseqüência da relação harmônica do homem com a natureza. A cura, nesta ótica, não significa a supressão imediata dos sintomas ou a resolução, instantânea, dos desequilíbrios que provocaram a desconexão do homem com o Todo sagrado e universal.


Ela pode ser até o simples reconhecimento dos potenciais internos de transformação de cada um, mas, com certeza, representa sempre uma nova oportunidade. Curar-se é desapegar-se do medo.

Aliás, o contraponto do amor não é o ódio, mas o medo que nos impede de nos entregarmos de forma plena e inteira, de deixarmos fluir o ciclo da vida e das relações. Em todas as tradições xamânicas os processos de cura se realizam por meio de desapego, perdão, liberação e amor.

"Para encontrar uma forma de cura especial, que pudesse responder a um desafio ou a um problema pessoal, nossos ancestrais caminhavam com freqüência pelas florestas ou sobre os rochedos das montanhas em busca de indicações ou sinais que pudessem auxiliá-los na cura e na sua busca de Sabedoria. Esta Caminhada de Cura constituía um meio de restabelecer os laços com os seus Guias, ou Ajudantes de Cura. Mesmo em nosso mundo agitado de hoje é possível encontrar este Caminho de Cura, se o buscador se dispuser a ler e a entender os sinais da natureza." (Jamie Sams, in Sacred Path Cards: The Discovery of Self through Native Teachings).

Um dos instrumentos de cura usados pelos povos indígenas do Norte e do Sul é a Roda de Medicina, também chamada de Elo Sagrado. Armada a Roda, estabelece-se um ritual de poder no qual são utilizadas as energias das Quatro Direções, dos animais-totens, das pedras e cristais, dos quatro elementos (Terra, Água, Fogo e Ar) e toda uma vasta simbologia que nos conecta com as forças cósmicas da Criação e da Cura.

Na Roda de Medicina — uma antiga e poderosa representação do Universo —, podemos identificar o poder dos símbolos e da necessidade de estarmos conectados e harmonizados com todas as demais manifestações de vida existentes no Planeta: os seres alados, os quatro pernas, os rastejadores, os seres das águas, o povo-em-pé, o povo pedra, o povo nuvem...

O que nos permite manter a conexão com toda a família planetária é a nossa intuição. E é por meio dela que alcançamos o dom da cura para nossas vidas, utilizando este poder pessoal e os recursos da imaginação. Ou seja, a capacidade de acessar as outras realidades, além desta que vivemos diariamente na nossa vida de cidadãos comuns.

O poder de cura está dentro de nós. Se buscamos o silencio, o estado de meditação, se procuramos nos ouvir e conseguimos escutar a nossa alma (aqui entendida como Animal de Poder, a energia responsável pela manutenção do corpo físico, da saúde e do bem-estar), saberemos o que é preciso fazer para deflagrar o processo de cura que necessitamos neste ou naquele momento. Quando não nos sentimos fortes o suficiente para agir, podemos buscar o auxílio de um curador para que, por meio de rituais, nos devolva (como pode acontecer nos casos de debilidade extrema) ou nos auxilie a reencontrar o espírito do nosso animal, possibilitando-nos a condição de reagirmos para que, assim, possamos realizar a nossa própria Caminhada de Cura.

"As Criaturas vivas possuem suas próprias mensagens de Cura e estão dispostas a partilhá-las com todos aqueles que se dispuserem a aprender a sua linguagem. Hail-lo-way-ain — a linguagem do Amor, na língua Seneca — é a forma pela qual Todos os Nossos Parentes se comunicam conosco. É pela Hail-lo-way-ain que nossos corações podem sentir as respostas recebidas do Caminho da Sabedoria e que o processo de Cura pode começar a se manifestar." (Jamie Sams, obra citada).

Os verdadeiros curadores reconhecem e sabem que o poder do amor é a mais poderosa energia de cura que o ser humano pode acessar com facilidade, pois está dentro de cada um. O curador, em muitas tradições, é definido como aquele que estende os braços do amor e está atento ao que tem coração e significado. O coração, para muitos povos nativos, é a ponte de ligação entre o Pai Céu e a Mãe Terra, além de ser o caldeirão alquímico onde se misturam emoção e pensamento e se transmutam sentimentos.

A cura também envolve "o princípio da reciprocidade, a capacidade de igualmente dar e receber, e a capacidade de vincular-se. Para mantermos nossa saúde e bem-estar necessitamos manter o equilíbrio entre crescer e receber e reconhecer quando um dos pólos está mais desenvolvido que o outro (...) O princípio da reciprocidade monitora o equilíbrio existente entre nossa natureza de amor e de saúde", pondera a antropóloga Angeles Arrien, Ph.D., na sua obra The Four-fold Way — Waiking the Paths of the Warrioi; Teacliet; Healer and Visionary.

Todo processo de cura passa, necessariamente, pelo coração. Quer seja do curador ou do curando. Sem isso, é impossível acessar as forças curadoras e curativas que o Universo disponibiliza para nós. Sem um coração íntegro e limpo é impossível encontrar a cura ou auxiliar no processo curativo de outrem, pois curare penetrar um momento transcendente e atemporal no qual se experimenta o Poder Divino. E este poder se expressa e se manifesta na capacidade de amar e entender as nossas relações com tudo que é vivo e não-vivo na Criação.

O curador verdadeiro é aquele que consegue expressar o ser em toda sua plenitude e que aprendeu a importância do "curar a si mesmo" no caminho da responsabilidade sobre si, compreendendo seus limites e responsabilidades, reconhecendo que é parte do Todo e, portanto, co-responsável pela doença ou cura do planeta e seus habitantes.

Desta maneira o curador ajuda a quem o procura a enxergar seus bloqueios e ver a potencialidade que possui de transmutá-los. É função do xamã estimular o "doente" a mudar o seu padrão sutil, abrindo-se para a cura verdadeira que inclui compreensão, vontade e aceitação.

O princípio da cura prega a necessidade de harmonia, equilíbrio, para se alcançar o bem-estar. Tudo aquilo que ajude o ser humano a se harmonizar com as demais manifestações de vida no Planeta, permita a sua integração com o ecossistema e auxilie no processo de adaptação dos corpos físico, emocional, mental e espiritual representa uma medicina.

Os xamãs possuem quatro medicinas principais: cura, acesso a conhecimento novo ou perdido, desenvolvimento do poder, profecia ou predições. Apesar de terem conhecimentos de todas elas, costumam concentrar-se em uma a fim de conhecê-la mais a fundo.

Cada processo de transmutação e cada curador traz a sua medicina própria. E todos os nativos se referem a medicina como o conjunto de elementos desse processo e a forma como eles são utilizados por determinado xamã.


De que barro é feito um xamã?
Xamã, pajé, curador... homem ou mulher medicina... o que transforma, possibilita a cura e é o detentor dos segredos do equilíbrio e da harmonia, o zelador dos encantos e das forças da natureza.


A figura do curador xamânico — seja qual for o seu nome regional — está presente em todas as civilizações e, acreditam os antropólogos, surgiu com o próprio homem, desde a era paleolítica. Sua função primordial era intermediar as relações entre os planos de energia, trazendo ao homem comum as mensagens, bênçãos e possibilidades do universo sagrado dos deuses.

Ao penetrar no mundo sutil, os pajés ancestrais escutaram a natureza, aprenderam com as ervas, os cristais, as estrelas, os cheiros, as cores, as faixas vibratórias, os animais. Como detentores dos segredos puderam realizar a alquimia necessária à continuidade da espécie, acompanhando-a afetuosamente em todo o seu processo evolutivo até os dias atuais.

Com este conhecimento, os curadores atravessaram as eras, adaptando-se aos movimentos sociais e políticos com a plena consciência da impermanência das crenças e limitações humanas. Assim é que xamãs surgiram no Oriente, na Sibéria, nas Américas e em todos os lugares exerceram a sua força de transformação e cura, renascendo no mundo moderno por meio dos movimentos de resgate da ecologia, da alquimia e das medicinas naturais e vibracionais.

Indistintamente todas as civilizações viveram uma abordagem xamânica da existência em suas histórias, e muitas culturas até hoje preservam esses conhecimentos. Os ensinamentos xamânicos são a herança comum dos que buscam o caminho para a sabedoria interior e a harmonia entre povos e nações. O xamanismo, no dizer do físico francês Patrick Drouot, "foi a primeira chave que permitiu ao ser humano compreender seu meio ambiente e viver em harmonia com ele".

O teólogo Leonardo Boff constata que o xamanismo, ao contrário do que defendem muitos estudiosos, não é um estágio primitivo de religião, mas sim "um estado extremamente elaborado de consciência, uma chave preciosa que os seres humanos desenvolveram para compreender o meio ambiente e viver harmonicamente com ele. Mais que dominar a natureza, o xamã procura entrar em comunhão com ela. Percebe a unidade sagrada da realidade nas múltiplas dimensões que vão além das três conhecidas pela nossa experiência empírica. Espírito e realidade complexa se entrelaçam de tal maneira que formam um único continuum".

Até a década de 60, os chamados adeptos da velha escola psicanalítica consideravam o xamã como um doente mental. A partir dos anos 70 começa a florescer o trabalho iniciado por Claude Lévi-Strauss e Mircea Eliade, este uma das maiores autoridades em matéria de história das religiões, e que resulta na apresentação do xamã como um criador de ordem e especialista de ofícios que vão da medicina e da biologia, passando pela farmacologia e a botânica, até a astrologia e liderança religiosa.

"Longe de serem trapaceiros, charlatões ou ignorantes, os curandeiros aborígines são homens de alta categoria, ou seja, homens que alcançaram, na vida secreta, um grau muito mais elevado do que a maior parte dos homens adultos — um passo que implica disciplina, treinamento mental, coragem e perseverança... os vários poderes psíquicos que lhes são atribuídos não devem ser de imediato repelidos como simples magia primitiva e 'faz de conta', porque muitos deles se especializaram no trabalho da mente humana, e na influência da mente sobre o corpo e da mente sobre a mente...".

O texto do antropólogo australiano A. P. Elkin, em seu Aboriginal Men of High Degree, sintetiza o que o xamanismo significa, enquanto sinal, para que o moderno homem branco compreenda para quê (e por quê) um sistema tão ancestral e antigo está se tornando atual e contemporâneo no mundo ocidental.

Se xamanismo é, antes de tudo, um sistema de cura baseado na integração perfeita com a natureza — que nutre e potencializa — e no respeito à consciência de que o homem faz parte do Todo universal, este é co-responsável e co-criador do caos ou da harmonia da vida e suas manifestações sobre a humanidade. Isto é bom, pois assim o homem pode transformar tudo — começando por si mesmo —, resgatando-se da doença e da dor para caminhar em direção à felicidade verdadeira.

É importante compreender que xamanismo "é também uma grande aventura mental e emocional" que envolve o curador e o paciente. O essencial é fazer as pessoas sentirem "que elas não estão emocional e espiritualmente sozinhas em sua luta contra a doença e a morte"... "zelo e cura caminham juntos" (Michael Harner, in O Caminho do Xamã).

Vem da íntima conexão com a Terra, chamada de Mãe, a possibilidade de transcender a realidade para compreendê-la e transformá-la. O estreitamento das relações com aquele que simboliza a própria cura (o xamã ou pajé) e a simplicidade é que fazem do xamanismo uma possibilidade ampla para o homem contemporâneo estressado e triste. É reconfortante saber que ele tem um aliado na descida à consciência de sua própria sombra... e alguém para festejar e receber o novo...

A principal função do xamã e servir de mediador entre os mundos físico e espiritual, partindo-se da premissa da existência de um mundo de espíritos dinâmicos e onipresentes. Tais espíritos e manifestações das forças da natureza são invisíveis para a maioria das pessoas, mas não para o xamã, que é um paranormal. Praticante da cura e adivinhação, ele preside rituais e celebrações e tem suas aptidões reconhecidas, cultivadas e preservadas porque dão acesso à magia.

O abismo cultural entre as tradições xamânicas e a visão cartesiana clássica é imenso. A perspectiva xamânica vai muito além dos limites da psiquiatria, psicologia e da compreensão de um mundo ordenado, estável e determinado que, hoje, é contrariada pelas descobertas revolucionárias da física quântica, o estudo das estruturas voláteis, a holografia, as experiências de expansão da consciência (muitas das quais feitas a partir do uso de substâncias psicoativas, algumas delas utilizadas desde a antigüidade pelos xamãs de variadas culturas, sobretudo da América Latina, a começar do México). Tudo isso tem levado cientistas sociais e pesquisadores a proporem uma revisão total dos conceitos formulados sobre a natureza humana e o universo.

As práticas xamânicas de cura obedecem a uma espécie de cronologia flexível, independentemente da cultura ou grupo étnico à qual respondam. Estes estágios não se excluem e, muitas vezes, se fundem assumindo aspectos transculturais comuns aos pajés, curadores e até mesmo terapeutas vibracionais que hoje buscam nesta forma expansível de consciência uma poderosa ferramenta de auxílio às suas medicinas.

A primeira etapa é a da preparação e purificação: curador e paciente submetem-se a rituais de limpeza áurica, aprontando-se para a cerimônia de cura, e a fumigação com ervas e raízes pode se estender às pessoas presentes e ao ambiente ou terreno ritual. Geralmente os nativos incluem a purificação por meio do suor, banhos e abluções com águas especiais e ervas. Algumas culturas indicam a abstenção de alimentos ligados à cerimônia ou que venham dificultar a transcendência dos estados comuns de consciência, e aparecem tabus quanto à prática sexual em determinados dias anteriores e posteriores ao ritual.

A segunda etapa é a da invocação e apresentação das imagens simbólicas que servirão de âncora aos seres divinos e sobrenaturais, aliados e protetores do xamã e daquele que o procura. São estimulados os sentidos, principalmente do paladar, olfato e tato, e os símbolos são apresentados com dramaticidade e especial deferência, sejam eles instrumentos como o tambor e o chocalho, bastões de poder, ícones, imagens ou preces e cânticos.

Assim que são invocados, os seres sagrados investem estes símbolos com energia e poder, bem como o curandeiro e o paciente, preparando o caminho para que o "doente" sinta-se convidado e estimulado a modificar os padrões vibratórios responsáveis pelo seu desequilíbrio, doença ou possessão.

O terceiro estágio, quando o curador ou o paciente — e até mesmo ambos — se identificam com os guias e seres invocados ou com a manifestação física da doença, difere de grupo a grupo. Enquanto alguns incluem a "incorporação" de tais entidades, a exemplo dos afro-brasileiros, com seus Orixás, e os Pankararu (tribo de Pernambuco, Brasil), com seus Encantados, outros demonstram a influência concreta de animais e seres sobrenaturais, mas não se desvinculam de sua consciência comum, fazendo uma ponte entre o físico e o espiritual pela canalização sutil das energias. Seja de que forma for, nesta etapa do processo o curador está investido da autoridade que lhe confere o convívio íntimo com seus guias, protetores, aliados e animais de poder e da conseqüente proteção que eles conferem à cerimônia e seus executores.

Este é um momento muito delicado. Se o curador perder o controle das forças que invocou sofrerá conseqüências extensivas ao paciente. Por isso o grau de reconhecimento de um xamã ou pajé pela comunidade está estreitamente ligado ao manejo que ele apresenta das forças naturais com as quais está lidando.

Em seguida o xamã reconhece — e tem reconhecido pelo grupo — que está aberto um portal de transformação e transmutação que propicia a cura. "O curador usa o poder extraordinário que agora tem aos olhos do paciente e dos expectadores para obter os resultados desejados. Vence a batalha, extermina a doença, expulsa o mal, contra-ataca o feitiço ou recupera a alma. Simbolicamente transformado, o paciente acredita que a verdadeira recuperação da saúde e da harmonia irão em breve acontecer" diz Donald Sandner em Os Navajos e o Processo de Cura.

O quinto patamar deste processo envolve a liberação das forças simbólicas invocadas. Precisam surgir procedimentos que tragam o curador, o paciente e o círculo de pessoas presentes ao estado comum de consciência, também chamado de "estado normal". Depois de ter vivenciado o poder transformador do símbolo, o paciente deve afastar-se dele para poder estar presente no aqui e agora, enraizar-se na vida prática do cotidiano e levar adiante sua proposta e serviço pessoal. Esta volta à realidade comum é alcançada por meio de agradecimentos, cânticos, preces e orações, banhos de ervas ou especiais em rio, cachoeira ou mar, seguidos, em alguns casos, de um repouso temporário para que os corpos sutis daquele que vivenciou o ritual de cura se encaixem e readquiram o equilíbrio e a harmonia.

Também no fechamento deste ciclo os xamãs têm orientações comuns: cabe ao paciente aproveitar um momento tão especial de encontro consigo mesmo em sua forma mais poderosa de harmonia, saúde e paz para transcender os padrões e bloqueios de energia que abriram caminho às doenças, possessões ou dores emocionais. Caso os comportamentos originais não sejam modificados com a conscientização de sua existência, exercícios, preces e/ou atitudes novas e mais saudáveis perante a vida, o paciente arrisca-se a desenvolver outras dores e patologias, até que possa dar o grande salto quântico da mudança interna.

A palavra xamã é de origem tunguska (povo nativo da Sibéria), definindo uma pessoa que pode transitar em outros mundos, entrar em estados alterados de consciência e acessar seus guias e aliados (minerais, vegetais, animais e espirituais).

O xamã ou pajé, neste conceito, diferencia-se do mago, bruxo ou médium africano ou espírita: ele se conecta com seus aliados e se transporta — através da porta da consciência — para os planos espirituais da natureza onde realiza o processo de cura que necessita acionar. Já os feiticeiros e médiuns citados invocam esses seres para os seus rituais incorporando-os e assumindo a sua presença no "mundo comum".

O xamã, desde os tempos mais antigos e remotos, não escolhe ser xamã como profissão. Dizem os nativos que ele obedece a um forte chamado interno, geralmente durante uma doença grave ou acidente, com uma visão, sonho ou transe espontâneo. A partir daí, o xamã pode descobrir que traz em si a semente da cura e da capacidade de estimular no outro a vontade de se desapegar da doença e da dor.

Por meio de experiências iniciáticas e um aprendizado árduo o futuro curandeiro experimenta a morte e o renascimento em si mesmo, penetra em outras dimensões, aprende a sair delas e voltar ao estado comum de consciência, é treinado na linguagem arquetípica dos animais, plantas, ervas, minerais e gemas e encontra seus guias e guardiões, mestres que possuem a chave que dá acesso aos processos de transmutação e cura. Cabe a ele, enquanto aprendiz, abrir as portas da sua percepção.

Por intermédio de estudos antropológicos estão sendo resgatados os conhecimentos xamânicos mais antigos. Eles chegam às universidades, consultórios, workshops e palestras e têm servido de suporte e gatilho para uma nova consciência em relação à natureza e do próprio homem.

  
Fonte: Livro Magia Xamânica - Derval Grmacho e Vitória Gramacho